Estar pronto é tudo

23 03 2010

Estou  fazendo umas aulinhas de inglês. Nada demais, apenas a velha “conversation class”, porque pretendo viajar daqui a algumas semanas e preciso perguntar às pessoas como pegar um ônibus, quanto custa tal produto, a que horas o museu fecha e onde posso encontrar comida sem glúten.

Desde os onze anos de idade que faço aulas de inglês. No colégio, fazendo parte do currículo de primeiro e segundo grau, foram oito anos. Fiz também Cultura Inglesa, quando adolescente. Ouvi (e ouço) muita música em inglês – o rock sempre fez parte da minha vida – e os  filmes e revistas nesse idioma sempre estiveram misturados com meu dia-a-dia. Depois, na Faculdade, estudei muito em livros em inglês e estudei o chamado “inglês instrumental” – que é aquele tipo de inglês voltado para termos e expressões dentro da minha profissão, no caso a Medicina, que exerci até 1990.

Com a Internet, que frequento assiduamente desde 1992, o idioma incorporou-se definitivamente ao meu cotidiano, de tal forma que muitas vezes me perguntam se determinado software que uso é em inglês ou português e eu não sei responder.

Mas toda essa prática sempre foi voltada para a leitura, para a compreensão e expressão da palavra escrita. Na hora de falar, ou pior, de entender o que me dizem, eu fico muito abaixo da média.

Quando tento conversar a coisa se complica e fica ao mesmo tempo muito engraçada. Isso porque, durante as aulas, eu não abro mão de dizer em inglês nada do que vem à cabeça, como se estivesse numa conversação livre na minha língua materna. Depois de uma meia hora disso, fico simplesmente extenuada, cansada mesmo, porque o processo exige de mim uma atenção, uma concentração, uma prontidão extrema.

É como aprender a dirigir: quando é no ínício, a gente precisa ficar atento à troca de marchas, pressão nos pedais e acionamento de luzes e sinaleiras que, na sequência, se tornam comportamentos automáticos e deixam de nos preocupar.

Por enquanto, a minha conversation class me exige extrema atenção, um estado permanente de alerta, de prontidão, de “readiness”, conceito tão bem traduzido na frase de William Shakespeare em Hamlet, Ato V, Cena 2.

“Not a whit, we defy augury; there’s a special Providencein the fall of a sparrow. If it be now, ‘tis not to come, if it be not to come, it will be now; if it be not now, yet it will come. The readiness is all.”

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De modo algum; nós desafiamos o agouro; há uma providência especial na queda de um pardal. Se tiver que ser agora, não está para vir; se não estiver para vir, será agora; e se não for agora, mesmo assim virá. O estar pronto é tudo. (Na tradução de Ana Amélia Carneiro de Mendonça)

Então, em busca do “estar pronto”, do falar sem precisar raciocinar escolhendo palavras e do pelejar para estropiar o mínimo possível o idioma de Shakespeare, fico por aqui, com um singelo “See ya!”





Futebol, cantoria de viola e Hamlet

3 11 2009
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Imagine, meu caro leitor, que você nunca foi a um jogo de futebol. Não sabe o que é, nunca viu na TV, nunca ouviu falar. Aí um belo dia alguém lhe convida para ir ao estádio. Você logo se entedia, pois vê aqueles homens correndo atrás de uma bola sem terem aparentemente o menor objetivo. Aí alguém lhe explica; são dois times diferentes. Um faz gol ali; outro faz gol acolá; e fazer gol é colocar a bola naquele espaço delimitado pelas traves. Aquele cara que está ali é o goleiro, e tem como objetivo impedir a bola de entrar… E assim por diante. Pouco a pouco você vai entendendo as regras do jogo e vai começando a tirar daquele espetáculo antes sem sentido muita distração, emoção e passatempo.

É assim com tudo. Para apreciar as coisas é preciso entendê-las. Umas são mais fáceis de entender do que as outras e eu, que gosto e entendo de futebol, nunca consegui entender as regras do beisebol ou do rugby, e por isso passo para outro canal quando vejo um jogo desses na TV.

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Quando eu era professora da Disciplina de Folclore Brasileiro, na UFRN, era uma maravilha apresentar para os meus alunos a cantoria de viola. Colocava um CD de cantoria, deixava eles escutarem um pouco e depois perguntava se haviam gostado. A maioria dizia que não tinha se ligado muito, que as vozes dos cantadores não eram bonitas, que não sabiam tocar as violas direito, que não haviam curtido. Aí eu começava a explicar a eles que aquilo era feito de improviso. “De improviso como?” falavam alguns. “De improviso, inventado na hora”, dizia eu. E aí dava a eles uma aula de poética, explicava a estrutura da sextilha, da décima, do martelo, o que era um mote e como se glosava, ensinava a contar os pés, ou seja, as sílabas poéticas. Mostrava que cada sextilha começava com a rima da anterior, introduzia-os a formas poéticas mais complexas como galope-à-beira-mar e martelo-gabinete… Daí a pouco estava todo mundo curtindo os CDs, com ouvidos atentos e olhos maravilhados que traduziam a satisfação estética e artística que estavam obtendo agora, depois de devidamente “alfabetizados” na arte da cantoria.

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Nas outras artes, é a mesma coisa. Existe todo um repertório que é preciso dominar para poder desfrutar daquela manifestação artística. Em algumas artes, como a música, é fácil saber quando o cantor está desafinado ou quando o instrumentista não sabe tocar, mesmo para quem é leigo. A música é uma arte que impressiona diretamente os nossos sentidos. Já em outros campos a coisa de complica, mas os obstáculos, se são maiores, não são intransponíveis.

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Apaixonada que sou pela poesia e pelo teatro, defendo a idéia de que não há nada em “Hamlet”, de William Shakespeare, que um adolescente de quinze anos não seja capaz de compreender, depois de devidamente “alfabetizado”, é claro. Comprovo isso toda vez que dou um curso em forma de leitura comentada da peça, geralmente para jovens. São cinco encontros de duas horas cada um, onde leio junto com a platéia toda a peça, cada dia um ato, parando, comentando e explicando. Um dado fundamental é que as pessoas aprendem, entre outras coisas, que o grande William Shakespeare não escrevia sobre reis e príncipes, mas sobre seres humanos que eventualmente eram reis ou príncipes. Um desses alunos me disse que, lendo “Hamlet”, aprendeu mais sobre si mesmo do que em um ano de terapia, com todo respeito que devo aos terapeutas.

Como diria o próprio Shakespeare: “…O olho do poeta, revirando, olha da terra ao céu, do céu à terra, e enquanto o seu imaginar concebe formas desconhecidas, sua pena dá-lhes corpo, e ao ar inconsistente dá local de morada e até um nome, tal é a força da imaginação.” (Sonho de Uma Noite de Verão, Ato V, cena 1)





Dia de Finados

2 11 2009
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Na Região do Cariri paraibano, onde minha mãe foi criada, a Morte é chamada carinhosamente por um nome de mulher: Caetana. Minha mãe dizia que a Caetana tem duas formas: a Moça e a Onça. Quando vem no formato de Moça, nos abraça tão suave, deixa os cabelos caírem por cima da gente e nos carrega tão macio que a gente nem sente. Mas às vezes ela está virada na Onça, e nos morde com seus dentes de pedra e desfia nossa vida com suas garras, esfolando a gente vivinha ainda. O roçado dela é o mundo, e onde tem gente viva a Moça/Onça Caetana afia suas garras e treina seus abraços macios e mortais.

Quando a gente nasce, é como se assinasse um contrato, e viver é esperar a liquidação da fatura. Só por medo da Morte é que a gente agüenta a Vida que às vezes é mais Onça do que a própria Caetana. Shakespeare diz que é por medo da morte, dessa fatal viagem para o país desconhecido de onde ninguém jamais voltou que suportamos “a angústia do amor desprezado, a morosidade da lei, o orgulho dos que mandam, o desprezo que sofremos dos indignos… Quem carregaria suando o fardo pesado da vida se não fosse o temor da Morte?”

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Altar mexicano dos mortos.

Há uma tradição mexicana que diz que cada pessoa morre três vezes. A primeira é a da morte mesmo, quando pára de respirar. A segunda é quando o corpo é sepultado. E a terceira é quando, em algum momento no futuro, seu nome é pronunciado pela última vez. Disso eu deduzo que não existe Morte: o que existe é o Esquecimento, pior, dez mil vezes pior do que a Morte porque às vezes acontece ainda em vida do freguês.

Se você viajar hoje pelo interior do Nordeste vai ver, nas janelas das casas perdidas no meio da escuridão da noite, velas acesas nas janelas: são as chamas dos mortos, brilhando na escuridão para que eles não sejam esquecidos. Como genealogista que sou, vivo cercada pelos meus defuntos queridos, esmiuçando suas vidas, reconstruindo seus passos, estabelcendo suas árvores de costados, seus laços de parentesco. Hoje é dia de me sentar na varanda quando a noite cair, acender a minha vela e, pacientemente, recitar em voz alta todos os seus nomes, por extenso, para que não caiam no esquecimento, começando pelo meu tetravô, tenente-coronel  Teothonio da Santa Cruz Oliveira, que viveu entre Correntes-PE e Viçosa-AL nos idos do século XIX até minha tia Maria Anunciada Santa Cruz Quirino (1927-2008), a última que deixou este mundo, no Natal do ano passado.

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La Catrina, personificação da Morte no folclore mexicano.

E para não terminar nesse clima solene, conto uma historinha que ouvi quando criança. Um homem tornou-se compadre da Morte, e o trato era que, quando ela visse buscá-lo, mandaria um aviso para que ele pudesse se preparar, tomando as providências para deixar os negócios em ordem. Anos depois o aviso chegou. O homem se apavorou e na manhã da Morte chegar, ele estando morto de medo, a esposa, muito criativa, disse; “Se avexe não, Fulano. Vista uma roupa velha, vá lá pra junto do fogão, se lambuse todo de carvão, fique de cabeça baixa atiçando o fogo e deixe a Comadre Morte comigo.” E assim ele fez. Daí a pouco, quando a Morte chegou que perguntou pelo Compadre a mulher falou que ele tinha tido um chamado urgente e que tinha viajhado às pressas: não estava ali. A Morte ficou chateada. “Mas é danado mesmo!” disse. “Eu vim de tão longe pra esse compromisso com o Compadre e ele me fazer uma desfeita dessas! Tem nada não. Pra não perder a viagem, vou levar aquele preto velho que está ali, junto do fogão…”






O que é bonito…

1 07 2009

… é o que persegue o infinito.*

Hoje, imagens que me inspiram.

1. A atriz Sarah Bernhardt

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2. Uma cidade com planta em forma de estrela.

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3. Página de manuscrito medieval.

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4. Salão que antecede o teatro do castelo da cidade medieval de Cesky-Krumlov, na república Theca, todo adornado com pinturas ilusionistas, no estilo barroco, sobre temas da commedia dell’arte.

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5. Tela do artista plástico paraibano Sérgio Lucena.

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6. As peças de William Shakespeare.

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7. Igrejas barrocas brasileiras. Essa é a Capela da Jaqueira, em Recife-PE.

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*A frase “O que é bonito é o que persegue o infinito” é de Braulio Tavares.





A eternidade do minuto

14 05 2009

forever youngO escritor Paulo Coelho defende interessante tese em um de seus artigos, desses que são publicados em jornais de todo o país. Diz ele que o desejo de imortalidade é na verdade uma armadilha, e que o camarada que obtivesse tal dom possivelmente seria muito infeliz porque a maioria de nós, seres humanos, somos fortemente resistente às mudanças. Na verdade, diz o escritor, o que gostaríamos era de ser imortais desde que o mundo que esta à nossa volta, como o conhecemos, também ficasse imortal”, ou seja, não se modificasse.

entrevista-com-vampiro05Paulo Coelho dá como exemplo o mito do vampiro, que é aquele cara cujo corpo “não vai seguir o curso normal da natureza; será jovem para sempre, pode viver o tempo que quiser, sem ter de lidar com os problemas relacionados à idade. Seu  único regime é um pouco de sangue todos os dias, e seu único cuidado com a pele é evitar a luz do sol – mas afinal isso é um preço muito pequeno que se paga diante de todas as possibilidades de uma vida eterna”, conclui, bem humorado, o escritor.

manual_vampirismoO mito do vampiro apaixonou gerações, até que, com o advento da Aids, o sangue tornou-se um líquido mais suspeito do que a água do esgoto. O próprio Paulo Coelho, no início de sua carreira, escreveu um livro sobre o tema, o Manual Prático do Vampirismo, livro esse que o próprio escritor fez por onde recolher do mercado tão logo ficou famoso pregando verdades mais amenas e mais voltadas para a “luz”. Eu, como boa bibliófila, tenho meu exemplarzinho bem guardado e não vendo por dinheiro nenhum.

Mas voltando a esse desejo de eternidade, é isso que nos faz ter filhos, escrever livros e plantar árvores, como se diz na sabedoria popular. Com esse objetivo, de eternizar nossa passagem pelo planeta, queremos deixar atrás de nós o maior número possível de marcas, de referências, de lembranças.

nightstar03É natural do homem querer a eternidade, e as religiões apregoam a vida eterna como uma das suas mais sedutoras possibilidades. Vida eterna sim, mas em outro mundo, no tal “país ignorado do qual ninguém jamais voltou”, nas palavras inspiradas de Shakespeare.  Nesse mundo aqui, a vida eterna se tornaria uma complicação porque todos os nossos amigos envelheceriam e morreriam; o homem amado, ao nosso lado, ficaria decrépito e depois também se finaria, e correríamos o perigo, sempre renovado, de não conseguirmos acompanhar a velocidade do avanço tecnológico, tornando-nos analfabetos eletrônicos em poucos anos.

Eternidade? Só a do minuto, deste minuto agora, enquanto você me lê, o único minuto do qual você e eu temos certeza de que é nosso, de que nos pertence e que é, certamente, o nosso minuto mais importante.





Ser ou Não Ser, eis a questão?

22 04 2009

hamlet-yorik“A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca” ou simplesmente “Hamlet”, como é mais conhecida, é entre as obras do “bardo” aquela que se encontra no topo da excelência artística. O enredo conta a história do príncipe Hamlet, cujo pai morre de causas aparentemente naturais; o fantasma do rei aparece então ao príncipe dizendo que foi assassinado e pedindo ao filho pra vingá-lo.

pooryorick2Dito assim, parece ser uma simples história de vingança, mas não é. Enquanto a trama vai sendo construída, os personagens vão se mostrando mais elaborados e o personagem principal assume um nível de profundidade e complexidade tal que serve como um verdadeiro estudo da alma humana.

“Hamlet” é uma obra tão arraigada no imaginário ocidental que, mesmo que nunca a tenhamos lido ou visto no palco ou no cinema, nos lembramos imediatamente dela se nos mostrarem a imagem de um homem, em atitude meditativa, segurando um crânio. E se eu perguntar a qualquer um dos meus caros leitores o que Hamlet está dizendo nesta hora provavelmente todos responderão: “Ser ou não ser, eis a questão”.

pooryorickMas é engano. Não é isso absolutamente o que diz o príncipe nessa hora. O famoso “ser ou não ser” localizado na Cena I do Ato III, ocorre numa sala do Castelo de Elsenor, onde não há caveiras nem ossadas. A cena na qual Hamlet empunha o crânio é, na verdade, a famosa “cena dos coveiros”, a primeira cena do Ato V.

Nesta cena, Hamlet está no cemitério do castelo, onde dois coveiros estão abrindo a cova de Ofélia, que será enterrada daí a pouco. Revolvendo a terra com a pá, um dos coveiros encontra uma caveira. Hamlet pergunta de quem seria aquele crânio e o coveiro responde que pertencia a Yoric, o bobo do rei. O príncipe então toma a caveira entre as mãos e lamenta; “Pobre Yorik”, relembrando quando era criança e se divertia na corte com os gracejos do bobo.

Então, por que sempre pensamos que o homem com a caveira na mão está dizendo o famoso “to be or not to be”? Elementar, meu caro leitor: a frase mais famosa da peça (e talvez do teatro) funde-se quase sem querer com sua imagem também mais famosa, embora aterradora: o homem, contemplando filosoficamente o profundo mistério da Morte.

Imagem e frase, impressas para sempre em nossa mente, em tributo eterno a um homem que elevou a dramaturgia ao nível das obras primas. Parabéns, William Shakespeare.

Laurence Olivier, na famosa cena.

Laurence Olivier, na famosa cena.